João Quinada
Crônica de Miracy Farias
“Caminhando contra o vento
Sem lenço e sem documento
No sol de quase dezembro
Eu vou...”
Isso mesmo! Alegria, Alegria, de Caetano Veloso, deveria ser o Hino de João Quinada, a trilha sonora deste documentário.
Recorro à memória histórica para escrever algumas palavras, um resumo de sua vida. Monossilábico, de responder apenas “sim ou não” e quando lhe faziam a pergunta, seu nome é João? Ele respondia: Que nada!
Daí o apelido desse forasteiro que chegara ao nosso distrito em novembro de 1947, mais ou menos.
Viera de um mundo que não era seu, cheio dos rostos estranhos, sem lembranças que se encaixassem nos seus pensamentos e sobrevivendo do que sobrava das mesas alheias.
Perambulava descalço e com os pés machucados, ia resistindo como as ervas nativas, pisadas, maltratadas e renascidas.
Trouxe bagagens, como seja, bolsas? Que nada, apenas restos apanhados nos montouros e conservados ao lado da bacia onde comia, no saco que conduzia às costas, sem descanso. Um predestinado! Tinha boa comida? Que nada!
Fizeram um quartinho, no sítio São Joãozinho, mas ele não quis portas e nem janelas.
À noite, estava lá; durante o dia; aqui.
Escutava todos os ruídos da natureza: ouvia as árvores gemendo quando açoitadas pelos ventos; recebia visitas dos bichos da noite; cochilava ao lado dos répteis, sem medo de ter medos e, essa proteção nascia da ausência da consciência.
Inimigo dos “ímpares” e amigo dos “pares”. Se alguém lhe desse uma banana, só queria duas, ou seja gostava que fosse um par de cada coisa doada.
Boa Vista se fez colo para humanizá-lo. Boa Vista é muito coletiva e se fez rede para balançar o homem sem nome.
Todos queriam bem aquele ser enigmático, porém Oraldo Leite e Lelo Batista adotaram o pedinte com cuidados de “pai”, amoroso e fiel. Amor profilático, como diz Pe. Fábio, nos seus sentimentos filosóficos.
O andarilho era filho pródigo e Boa Vista o teto do acolhimento.
Oraldo, o meu marido, foi às lágrimas com a sua morte, no ano de 1992. Foi quando conheci o seu pranto pela primeira vez, após 36 anos de convivência.
Pediu-me para fazer um cartaz e os dizeres ficaram expostos sobre o seu caixão.
Eis a mensagem:
“Deus deve gostar de pessoas comuns, se não gostasse não teria feito tantas”
João, não nascestes aqui, mas Boa Vista viveu e cresceu no teu espírito inocente. O mundo te cobriu de andrajos tecidos pela doença e o descaso social, porém, Deus te espera no céu, coroando-te rei. Rei dos humildes. Deus sabe o teu nome e por ele serás chamado.
Nota da editora: A história de João Quinada foi transformada em DVD. O texto de apresentação é assinado pela professora Maria da Conceição Gonçalves Pereira Araújo. Confira!
João Quinada, uma incógnita encantadora
Maria da Conceição Araújo *
Nunca
pude saber de onde veio onomástico João e por que não José para chamá-lo de Zé.
Talvez por ser João parafraseou o João bíblico no destino transformador de quem
peregrinava, clamava, na aridez da terra-mãe, em seu silêncio de mil
vozes...Quem sabe? Caminhava só e, nenhum vira-lata ou bichano, de sete vidas,
a ele se aconchegaram. Em outras palavras, nunca precisou de Argos ou Rocinante
para acompanhá-lo na procura de uma caverna ou ilha para se estabelecer com o
seu séquito de silentes...
Nem
Ulisses e nem D. Quixote. Mas tinha um quê dos dois. Era um Cavaleiro andante e
errante com espada e ginete invisíveis, que num conto mágico, das Coisas do
Nunca, apareceu em Boa Vista: nunca se soube de onde veio e se ia para algum
lugar e se tinha algum condado. Sabe-se que no São Joãozinho (coincidência?)
estabeleceu a sua ilha/caverna na fortaleza guarnecidada de uma velha ponte...
Por que numa ponte?
Invariavelmente,
seu dia iniciava com os primeiros raios de sol e rumava a Boa Vista para o
repasto do dia e, voltava com os últimos raios deste mesmo sol. Nunca houve
nenhum registro que o qualificasse, mas contraditoriamente foi alvo de
observações, e sobre ele a imaginação corria e corre ainda solta. Creiam, pois,
só nunca lhe atribuíram as características de um extra-terrestre!
Tinha
um rosto ovoide e queixo fino, nariz afilado, tez crestada, olhos negros,
cabelos densos, negros e estirados como de um cacique a princípio, alto, magro,
olhar retilíneo, comumente difuso ou mergulhado como num mundo autista...
Como
um peregrino não precisa do dinheiro com o natural apreço. Não tinha
comportamento abusivo e, tudo "explicava" numa discreta risada como
numa fuga de pauta infinda... João Quinada era mistério!
Chamava-me
atenção quando fumava um charuto, sorvia com tanta voracidade que mais parecia
uma brasa incandescente e de sua boca saíam baforadas que se espalhavam como
grossas nuvens negras que escondiam até o seu rosto e, neste momento, era como
se ressuscitassem um guerrilheiro ou um caudilho. Neste momento João Quinada
era imponente no seu silêncio e olhar perdido.
Tudo
em João Quinada era fugaz, mas o seu mistério não.
Muitas
vezes eu e Catarina acompanhávamos o seu Banquete. A Família de Seu Agostinho
Lucena tinha um cuidado, quase filial, de não deixá-lo sem almoço. Hoje me
recordo de que comia numa lata onde se comprava doce de goiabada Ceci. Era o prato
de João Quinada. Pois bem, ainda hoje me vem a interrogação de onde vinha
aquele ritual de silêncio que o seguia até terminar a refeição? Ao terminá-la
retirava os pequenos restos de comida com um pouco de água e bebia a sua taça
primeira. Na segunda, mais cheia de água, a bebia, devagar e sem fazer barulho,
a enxugava e guardava na sua polpuda mochila junto a seus poucos pertences,
limpava a boca com a manga da camisa.Como se respirasse e farto sorria para nós duas e
partia.
Poderia
dizer ainda que ele olhava para as meninas que dele, sem medo se achegavam, ria
muito. Nos olhava sem brilho cor, era como se externasse uma lascívia, também,
perdida...
Hoje
João Quinada veio à Cena, mas jamais profanado o silêncio a que se permitiu.
Todos falaram e falam dele, revelando às novas gerações este ser incrível e
apaixonante. Agora João Quinada se foi identificado: com manta, com cajado, com
espada e com ginete acompanhado por seu silêncio e sua História que será, para
sempre, instigante e, sem fim até.
* Profa. Maria
da Conceição Gonçalves Pereira Araújo (UFPB/CCA-Areia, PB (Aposentada)
Membro do Instituto Histórico e Geográfico do Cariri
Paraibano
Membro da Academia de Letras de Areia (ALA)
Membro do PEN Clube do Brasil (Seccional PB)
SINOPSE
Um peregrino chega a comunidade de Boa Vista-PB, em 1947, sem mala e sem destino, fixa-se no lugar e passa a conviver com a população, sendo destacado pelas suas particularidades e mistério, conquista alguns padrinhos e madrinhas pelos quais mantém sua vida até o ano de 1992 quando então falece, e levando consigo o segredo do seu nome verdadeiro e sua origem.
Um peregrino chega a comunidade de Boa Vista-PB, em 1947, sem mala e sem destino, fixa-se no lugar e passa a conviver com a população, sendo destacado pelas suas particularidades e mistério, conquista alguns padrinhos e madrinhas pelos quais mantém sua vida até o ano de 1992 quando então falece, e levando consigo o segredo do seu nome verdadeiro e sua origem.
FICHA TÉCNICA
Direção: Flávio Alex Farias
Produção executiva: Soahd Arruda Rached Farias
Trilha sonora Armorial Cordas de Caroá
Roteiro: Flávio Farias, Maria Oliveira, Manuella Oliveira e Márcia Maracajá
Produção Local: Thomas Guerra, Airton Cunha Gomes e Thallisson Guerra
Participação especial: Tito Neto (João Quinada)
Câmera e edição: Alunos do curso de Arte e Midia (UFCG)
Realização Prefeitura Municipal de Boa Vista, Pontão da Cultura e Universidade Federal de Campina Grande
Direção: Flávio Alex Farias
Produção executiva: Soahd Arruda Rached Farias
Trilha sonora Armorial Cordas de Caroá
Roteiro: Flávio Farias, Maria Oliveira, Manuella Oliveira e Márcia Maracajá
Produção Local: Thomas Guerra, Airton Cunha Gomes e Thallisson Guerra
Participação especial: Tito Neto (João Quinada)
Câmera e edição: Alunos do curso de Arte e Midia (UFCG)
Realização Prefeitura Municipal de Boa Vista, Pontão da Cultura e Universidade Federal de Campina Grande
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