domingo, 19 de agosto de 2012

João Quinada - o mendigo que cativou uma cidade

Nota da editora: Honrosamente abrimos espaço para a literata boavistense, Miracy Farias, que tem a leitura como hobby e a escrita como arte literária expressar seu talento. Em sua crônica, ela narrará a interessante história de um mendigo, sem nome oficial, que viveu e morreu em Boa Vista- PB e cativou a cidade com seu jeito especial de ser. Agradecemos a participação de Miracy. Boa leitura!     

  

                                                           João Quinada
                                                              Crônica de Miracy Farias

                                      “Caminhando contra o vento
                                     Sem lenço e sem documento
                                     No sol de quase dezembro
                                     Eu vou...”


    Isso mesmo! Alegria, Alegria, de Caetano Veloso, deveria ser o Hino de João Quinada, a trilha sonora deste documentário.
    Recorro à memória histórica para escrever algumas palavras, um resumo de sua vida. Monossilábico, de responder apenas “sim ou não” e quando lhe faziam a pergunta, seu nome é João? Ele respondia: Que nada!
    Daí o apelido desse forasteiro que chegara ao nosso distrito em novembro de 1947, mais ou menos.
    Viera de um mundo que não era seu, cheio dos rostos estranhos, sem lembranças que se encaixassem nos seus pensamentos e sobrevivendo do que sobrava das mesas alheias.
    Perambulava descalço e com os pés machucados, ia resistindo como as ervas nativas, pisadas, maltratadas e renascidas.
    Trouxe bagagens, como seja, bolsas? Que nada, apenas restos apanhados nos montouros e conservados ao  lado da bacia onde comia, no saco que conduzia às costas, sem descanso. Um predestinado! Tinha boa comida? Que nada!
    Fizeram um quartinho, no sítio São Joãozinho, mas ele não quis portas e nem janelas.
    À noite, estava lá; durante o dia; aqui.
    Escutava todos os ruídos da natureza: ouvia as árvores gemendo quando açoitadas pelos ventos; recebia visitas dos bichos da noite; cochilava ao lado dos répteis, sem medo de ter medos e, essa proteção nascia da ausência da consciência.
    Inimigo dos “ímpares” e amigo dos “pares”. Se alguém lhe desse uma banana, só queria duas, ou seja gostava que fosse um par de cada coisa doada.
    Boa  Vista se fez colo para humanizá-lo. Boa Vista é muito coletiva e se fez rede para balançar o homem sem nome.
    Todos queriam bem aquele ser enigmático, porém Oraldo Leite e Lelo Batista adotaram o pedinte com cuidados de “pai”, amoroso e fiel. Amor profilático, como diz Pe. Fábio, nos seus sentimentos filosóficos.
    O andarilho era filho pródigo e Boa Vista o teto do acolhimento.
    Oraldo, o meu marido, foi às lágrimas com a sua morte, no ano de 1992. Foi quando conheci o seu pranto pela primeira vez, após 36 anos de convivência.
    Pediu-me para fazer um cartaz e os dizeres ficaram expostos sobre o seu caixão.
    Eis a mensagem:
    “Deus deve gostar de pessoas comuns, se não gostasse  não teria feito tantas”
    João, não nascestes aqui, mas Boa Vista viveu e cresceu no teu espírito inocente. O mundo te cobriu de andrajos tecidos pela doença e o descaso social, porém, Deus te espera no céu, coroando-te rei. Rei dos humildes. Deus sabe o teu nome e por ele serás chamado.



 Nota da editora: A história de João Quinada foi transformada em DVD. O texto de apresentação é assinado pela professora Maria da Conceição Gonçalves Pereira Araújo. Confira!



João Quinada, uma incógnita encantadora

Maria da Conceição Araújo *

Nunca pude saber de onde veio onomástico João e por que não José para chamá-lo de Zé. Talvez por ser João parafraseou o João bíblico no destino transformador de quem peregrinava, clamava, na aridez da terra-mãe, em seu silêncio de mil vozes...Quem sabe? Caminhava só e, nenhum vira-lata ou bichano, de sete vidas, a ele se aconchegaram. Em outras palavras, nunca precisou de Argos ou Rocinante para acompanhá-lo na procura de uma caverna ou ilha para se estabelecer com o seu séquito de silentes...
Nem Ulisses e nem D. Quixote. Mas tinha um quê dos dois. Era um Cavaleiro andante e errante com espada e ginete invisíveis, que num conto mágico, das Coisas do Nunca, apareceu em Boa Vista: nunca se soube de onde veio e se ia para algum lugar e se tinha algum condado. Sabe-se que no São Joãozinho (coincidência?) estabeleceu a sua ilha/caverna na fortaleza guarnecidada de uma velha ponte... Por que numa ponte?
Invariavelmente, seu dia iniciava com os primeiros raios de sol e rumava a Boa Vista para o repasto do dia e, voltava com os últimos raios deste mesmo sol. Nunca houve nenhum registro que o qualificasse, mas contraditoriamente foi alvo de observações, e sobre ele a imaginação corria e corre ainda solta. Creiam, pois, só nunca lhe atribuíram as características de um extra-terrestre!
Tinha um rosto ovoide e queixo fino, nariz afilado, tez crestada, olhos negros, cabelos densos, negros e estirados como de um cacique a princípio, alto, magro, olhar retilíneo, comumente difuso ou mergulhado como num mundo autista...
Como um peregrino não precisa do dinheiro com o natural apreço. Não tinha comportamento abusivo e, tudo "explicava" numa discreta risada como numa fuga de pauta infinda... João Quinada era mistério!
Chamava-me atenção quando fumava um charuto, sorvia com tanta voracidade que mais parecia uma brasa incandescente e de sua boca saíam baforadas que se espalhavam como grossas nuvens negras que escondiam até o seu rosto e, neste momento, era como se ressuscitassem um guerrilheiro ou um caudilho. Neste momento João Quinada era imponente no seu silêncio e olhar perdido.
Tudo em João Quinada era fugaz, mas o seu mistério não.
Muitas vezes eu e Catarina acompanhávamos o seu Banquete. A Família de Seu Agostinho Lucena tinha um cuidado, quase filial, de não deixá-lo sem almoço. Hoje me recordo de que comia numa lata onde se comprava doce de goiabada Ceci. Era o prato de João Quinada. Pois bem, ainda hoje me vem a interrogação de onde vinha aquele ritual de silêncio que o seguia até terminar a refeição? Ao terminá-la retirava os pequenos restos de comida com um pouco de água e bebia a sua taça primeira. Na segunda, mais cheia de água, a bebia, devagar e sem fazer barulho, a enxugava e guardava na sua polpuda mochila junto a seus poucos pertences, limpava a boca com a manga da camisa.Como  se respirasse e farto sorria para nós duas e partia.
Poderia dizer ainda que ele olhava para as meninas que dele, sem medo se achegavam, ria muito. Nos olhava sem brilho cor, era como se externasse uma lascívia, também, perdida...
Hoje João Quinada veio à Cena, mas jamais profanado o silêncio a que se permitiu. Todos falaram e falam dele, revelando às novas gerações este ser incrível e apaixonante. Agora João Quinada se foi identificado: com manta, com cajado, com espada e com ginete acompanhado por seu silêncio e sua História que será, para sempre, instigante e, sem fim até.

* Profa. Maria da Conceição Gonçalves Pereira Araújo (UFPB/CCA-Areia, PB (Aposentada)
Membro do Instituto Histórico e Geográfico do Cariri Paraibano
Membro da Academia de Letras de Areia (ALA)
Membro do PEN Clube do Brasil (Seccional PB)



SINOPSE
Um peregrino chega a comunidade de Boa Vista-PB, em 1947, sem mala e sem destino, fixa-se no lugar e passa a conviver com a população, sendo destacado pelas suas particularidades e mistério, conquista alguns padrinhos e madrinhas pelos quais mantém sua vida até o ano de 1992 quando então falece, e levando consigo o segredo do seu nome verdadeiro e sua origem.
FICHA TÉCNICA
Direção:  Flávio Alex Farias
Produção executiva: Soahd Arruda Rached Farias
Trilha sonora Armorial Cordas de Caroá
Roteiro:  Flávio Farias, Maria Oliveira, Manuella Oliveira e Márcia Maracajá
Produção Local: Thomas Guerra, Airton Cunha Gomes e Thallisson Guerra
Participação especial: Tito Neto (João Quinada)
Câmera e edição: Alunos do curso de Arte e Midia (UFCG)

Realização Prefeitura Municipal de Boa Vista, Pontão da Cultura e Universidade Federal de Campina Grande


sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Aos pais de outra dimensão

    Fátima Farias


    Manifestação de afetividade, acredito, independe de data especial. Mas, já que hoje, conforme está convencionado, existe um pretexto e todo um clima está voltado para abraçar, almoçar ou passar o dia com o pai, de repente me bate uma saudade maior. Não posso ver nem tocar o meu amado pai. A dimensão que nos separa permite apenas sentir sua sublime energia. Energia que me acalenta, que me faz provar uma sensação de paz, embora não faça superar a falta de sua presença física.
    Filhos e pais que estão neste planeta e que hoje tem a chance de se confraternizar, não percam esta oportunidade. Um pai é muito importante na vida da gente. Para os dois vale a pena refletir a importância desta relação, em alguns casos, só notada quando não é mais possível compartilhar. E ninguém melhor expressou isso     que o grande jornalista Artur da Távola, em alguns trechos da crônica que transcrevo a seguir:
    “A perda do pai é a retirada da rede protetora no momento do salto... É o começo do balanço da própria vida... É o início da significação. As palavras, antes inocentes, começam a fazer um estranho e novo sentido. Voltam a ser o que significam e não o que aparentam. A perda do pai começa a nos ensinar o valor do tempo.
    O que não fizemos, a visita deixada para depois, o gesto adiado, a palavra não dita, a compreensão não exercida, o papo adiado, a advertência desdenhada, o convite abandonado sem resposta. Nunca somos mais sós do que na primeira noite em que já não o temos. Depois piora: dói menos mas a solidão é maior...
    O pai é o mistério enquanto vida e revelação depois de morto. Num segundo entendemos tudo o que, durante a vida nele nos parecia uma gruta de mistérios. Ele só começa a viver quando não está... Seus objetos ganham mais vida, suas comidas preferidas passam a ter mais gosto, suas palavras ganham o sentido que só o tempo e a repetição outorgam às coisas”.
    E para complementar a homenagem aos pais que habitam no Além e especialmente ao meu, peço licença ao espírito de Sérgio Bittencourt, para usar o trecho de sua composição musical e dizer ao meu amado pai que “naquela mesa está faltando ele e a saudade dele está doendo em mim”

Publicado na  minha coluna dominical no jornal O Norte em 11.08.2002