domingo, 6 de maio de 2012

No aconchego da ancestralidade


       

                        Fátima Farias



      Existem recantos que são como gente. Fazem parte de nossas vidas e amamos tanto como se fossem pessoas especiais. Para mim, o mais marcante é a Fazenda Navalha, propriedade de meus avós paternos. Durante a Semana Santa de 2004 revivi emoções de momentos importantes de minha infância, ao revisitar aquelas paisagens inesquecíveis e fotografar o panorama atual.

      E os queridos entes patriarcais? Apenas ausência física.  Eles partiram, mas suas energias benéficas estão impregnadas ali. Quantas saudades! Logo após a passagem da porteira principal, que dá acesso a então centenária casa, deparo-me com meu querido tio Euclides, o atual proprietário. Exatamente nas calçadas altas de pedras, onde algumas vezes me sentei com meu pai, para observar o gado na pastagem. De repente, uma onda de saudades dele me invade o peito. Parecia vê-lo em cada canto.

      Na frente da casa, ainda resiste a imponente e secular baraúna (sempre bem reverenciada pela família), que parece perpetuar o tempo decorrido das gerações. Regredi no tempo e me revi criança, sentada na janela, que dá acesso ao curral, onde no final da tarde aguardava o leite com espuma, tirado na hora. Entrando em contato com tudo aquilo, me permitia desfrutar daquele aconchego. Visitei os lugares onde brincava e colhia seixos (pedrinhas redondas e lisas), que me encantavam. Atrás da casa um lajedo, protegido do sol com um pé de juazeiro, palco de minhas brincadeiras infantis.

      Fechei os olhos e me debrucei na janela do tempo. Era um misto de  saudade e felicidade! Mas, ao mesmo tempo, uma grande felicidade por reviver aqueles tempos. Revisitar os recantos da nossa história significa reencontrar nossas referências e realimentar a alma. Tendo como cicerone o meu querido tio José, seguimos em direção aos açudes. Longe de imaginar que seria uma despedida, pois ele partiu para a eternidade em dezembro do mesmo ano.  Na comitiva, também, meu sobrinho-neto Alisson, meus primos Bartos e Graco, e o cunhado Ubirajara.

      Na área dos açudes, comecei a lembrar dos banhos que ali tomava, quando criança, cujas águas límpidas e fresquinhas enchiam os tanques naturais, cobertos com aquela pasta verde e num certo trecho declinado se assemelhava a uma cachoeira, onde aproveitávamos para nos deliciar naquela correnteza. E, ao reescrever estas linhas bate uma saudade de minha mãe, que partiu para outra dimensão em fevereiro deste ano de 2011. Era ela quem administrava aquele lazer, cuidando para prevenir afogamentos ou outros acidentes.

  Mas voltando aquele cenário bucólico, energético e atraente, automaticamente, como se fora um filme, fecho os olhos e aquelas paisagens e sensações foram se descortinando na minha alma. De tão real, vi um romântico por do sol e, a seguir, a lua refletindo nas águas dos açudes (conhecidos como Açudão e Açudinho) e iluminando todo pátio. Senti a brisa singela no meu corpo e tomei banho com a água fresquinha da correnteza, rumo ao trecho denominado de “pedrinhas”, desembocando como uma cachoeira. O perfume da relva e a beleza das flores do campo também presentes. Corri pelas redondezas dos tanques naturais, escutei o canto dos pássaros, saboreei o leite espumado e o umbu, curti o cheirinho do curral e tantas outras coisas mais.

     Em cada trecho parecia sentir a vibração salutar do meu pai e seus antecedentes, como se nos acompanhassem naquela jornada turística de reminiscências. Que pena! Terminou aquela etapa e prosseguimos, alguns quilômetros, para eu, enfim, conhecer a Fazenda Viração, propriedade dos meus bisavós paternos. Tinha a curiosidade de conhecer a capelinha do local, onde meu bisavô fora assassinado. Pai Pereira (assim tratado pelos seus descendentes) havia vendido um gado e alguém ficou de tocaia, pensando que ele levaria consigo o dinheiro da venda. Quando o cavalo voltou sozinho para casa, a família estranhou e foi procurá-lo, encontrando-o morto a machadadas.

     Uma coisa que me chamou atenção foi a quantidade de esculturas ali depositadas (pés, cabeças, mãos, seios etc) representando o pagamento pelo alcance de promessas. Dizem que ele era um homem de alma muito boa e caridosa. Talvez esse o motivo, até hoje, que inspira as pessoas a buscarem sua ajuda espiritual e agradecer com aquelas peças representativas do corpo humano lesado.

    Vale a pena ressaltar e reconhecer nossas origens.  Sou herdeira de antecedentes que cultivaram bem o amor à família. Estou cada vez mais envolvida com a visão sistêmica, abordagem descoberta pelo alemão Bert Hellinger, conhecida por Constelação Familiar. Ele nos incentiva a valorizar e honrar nossa ancestralidade, o pertencimento e a hierarquia, para reconhecermos as ordens do amor e favorecer o reencontro com as nossas referências.

     Obrigada minha ancestralidade! Eu me curvo a vocês, reverencio e honro toda linhagem paterna e materna. Na Constelação Familiar aprendi que não somos uma alma isolada. Cada um de nós é integrante de uma alma maior, recebendo influências da família, cultura e sociedade. Vivenciei e constatei que faz todo sentido. Agora, quero mais é seguir sempre em frente, na roda viva do tempo, para prosseguir os meus dias de liberdade plena e luz, na minha jornada evolutiva. E o melhor: sempre amparada no aconchego de ancestralidade.


•    Este texto está publicado no livro ‘Memórias guardadas no baú de Aninha’, da autoria de Maria do Socorro Farias Almeida.

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