domingo, 7 de julho de 2013

Homenagem à Ana Pereira de Farias


 Miracy Farias



       O centenário do nascimento de Ana, Naninha, Naninha de Luiz Pereira, inspira uma crônica. É uma mensagem que cheira à saudade. Por que? Porque essa prima, que morreu há 21 anos, era prima legítima de Aracy, minha mãe, uma Pereira de Farias.

         Naninha e minha mãe seguiam pela vida “como ponto e contraponto, uma impossível sem a outra”. Quando faleceu, minha genitora ficou desolada, falando assim:  perdi uma irmã! Naninha nasceu no dia 16 de abril de 1913. É-me impossível fazer todos os desdobramentos dessa data, pois, eu não havia nascido.
         Por serem fazendeiros prósperos, o casal Quinca e Elvira deve ter festejado intensamente a sua chegada. Sua vinda trouxe encantamento, deixando a fazenda Navalha encantada. Foi um presente sagrado e que receberam como “uma esplêndida borboleta que voou da mão de Deus”. Foi um daqueles dias que se pode dizer que mudaram tudo. O povo dessa época teve o privilégio de comentar o que testemunhou sobre as comemorações.
         Maravilhava-me quando ela falava do seu pai, Quinca Pereira, de sua caligrafia esmerada, da letra desenhada e que fazia da leitura o seu ritual. De sua mãe, Elvira, aprendeu a preservar a hierarquia doméstica, o primoroso serviço da culinária e também suas atitudes enérgicas. Naninha, miríade de referências.
Arquivo vivo de informações que saciaram a minha sede de curiosidade, de conhecer o melhor das particularidades de nossa genética. Era incomensurável o vínculo que nos unia. Mulher/caridosa, sim. Aqueles serviçais que transitavam livremente por sua casa, sempre saíam com tigelas cheias de comidas, feitas nas panelas que fumegavam no fogão de lenha.
Uma apaixonada pelos irmãos. Após tantos anos de sua partida para o Além, continuo em boas lembranças suas. Foi-se, mas ficou o marco – o Solar dos Pereira de Farias. Olho aquele casarão imponente, dominando o fascínio da nossa Boa Vista. Antes, tão impregnado de vozes, recebendo visitas e visitantes, constantemente animado pelo vaivém do marido, filhas, netos, bisnetos, irmãos, familiares, amigos e agregados.
E agora? Apesar de habitada por sua neta Sandra e seus bisnetos, Bartos e Graco, as janelas são atalaias vigiando todas as memórias. Através delas, os passantes enxergam a simpatia do interior dos seus compartimentos. O silêncio fala de ausências e despedidas.
Solar dos Pereira de Farias é comparável ao mar. Sou navio singrando as águas desse oceano, desse porto onde estão ancoradas as passagens da minha infância, vivida ao lado de Socorro, Margarida e Cidinha. No meu imaginário, junto os fragmentos das narrativas que garimpei no território afetivo de Naninha. Naninha, uma historiadora nata.
É rememorando o tempo que recomponho as paisagens do meu antigamente, um antigamente que ousei aprisionar na moldura da casa de Luiz Pereira / Naninha. Por tantos valores, as consequências de não mais existir, Naninha, ainda repercutem no meu ser saudosista.
Entre mim e Naninha existia uma relação de tia/sobrinha, algo sagrado. 


Nota da editora: Agradeço à prima Myra ocupar este espaço para ressaltar a trajetória de minha querida Titia Naninha, que me estimava bastante. Ela revelava esta afeição através de gestos, sorriso largo, sempre que me via. Conversava comigo como se fôssemos de uma mesma geração. Era uma grande empatia. Senti muito sua partida e sei que de onde estiver ela torce por mim. Um fato que mais se destacou foi o seu imenso amor à família. Como primogênita e única mulher amava seus cinco irmãos como se fora uma mãe, o mesmo sentimento repetido para toda sua descendência. Este exemplo marcante é cultivado, com muito carinho, por todos nós, que temos o privilégio de fazer parte de sua família.
 
 
Luiz Pereira de Farias – Um mar sereno que invoca a paz
por Miracy Farias*

O cinema produziu milhares de atrizes e mitos. A maior foi Marilyn Monroe, eleita várias vezes a mulher mais sexy do século. Nasceu no ano de 1926 e morreu jovem aos 36 anos – mesmo com o fim triste, hoje, o seu nome é sinônimo de beleza, sensualidade e efervescência. Dormia com duas gotas de Chanel n.º 5 todas as noites.
Mas, não é a importância de Marilyn que me une a esses quatro números que formam um ano tão memorável. Não, há encimando no Solar de Luiz Pereira – 1926 – como um marco do ano de sua construção; nascimento de ambas, a artista e a casa.  Foi edificada com o destino de fitar o poente, sendo guardiã das horas crepusculares de Boa Vista.
É deste mirante de onde podemos observar um ocaso tecido de tons avermelhados e luzes fascinantes, que coroam o encanto do sol que se despede todas as tardes. Dr. Fechine me dizia: “É aqui, de onde se pode ver o por do sol mais bonito”. Já Oraldo, meu falecido esposo, me dizia: “Não há localização mais privilegiada nesta cidade”.
Casa/amiga onde estão enraizadas as memórias de minha infância, juventude e maturidade, vividas e convividas ao lado dos meus familiares amados e que me acolheram como filha. Então, passei “a colar todos esses fragmentos do passado” no vaso amoroso de minha crônica, tentando recompor os cenários que o tempo ousa devorar.
Vale a pena um capítulo à parte, escrito pelas lembranças que viajam em minha mente.
Rememoro com riqueza de sentimentos a preciosidade contida no Solar de Luiz Pereira. Possui uma arquitetura antiga e que é sempre atual, daí o privilégio de ser um dos melhores dessa cidade.
Fachada enfeitada pela variedade de detalhes, quatro janelões escancarados que se abrem para o horizonte de onde vem, todas as tardes, uma poeira dourada, embelezando o espaço amplo da praça. A luminosidade deixa as casas rebrilhando ao sol. O crepúsculo parece um abraço enlaçando tudo e todos.
Dou um mergulho profundo dentro desse rio cheio de histórias, pois, assim considero o clã dos Pereira de Farias. Respaldada pelo apoio desse casal (Luiz Pereira e Naninha), recebi as minhas principais influências na formação da busca familiar e eles, sabiamente, conheciam até o meu avesso humano.
Sinto-me um cão saudoso, fiel, farejando os cantos e recantos do casarão, refazendo as trilhas do meu, do nosso passado. No meu imaginário, passeio pelas suas dependências bem cuidadas, bem decoradas.
Rubem Alves fez uma crônica sobre o lugar mais importante da casa – A cozinha.
Ah, a cozinha cheirosa de Naninha!
Por ser uma família abastada, levava uma vida farta. Alguidar abarrotado de carne cheirava fervente no fogo reverberante. Parece-me escutar o seu crepitar. Cocadas de leite, buchadas, comidas de milho verde, papo de peru recheado, tudo dando a impressão de ser uma casa de festas e preparada para hospedar. Naninha não dispensava a chaleira que estava sempre com água quente para escaldar a louça e isso fazia parte do seu ritual de limpeza.
A mobília de madeira de lei, porcelanas, cristais, estátuas, abundavam naquele ambiente próspero. Maravilhei-me muitas vezes, olhando os melhores tecidos exibidos através de sua costureira particular, Nelsina (Nelsina de Raminho).
Naninha, vocacionada para narração, me contava passagens de sua convivência com amigos e conhecidos e, sobretudo, quanto à vida do Navalha. Falava de uma pessoa da família de Dona Otília, que veio do Rio e sendo acostumada a tomar banho de banheira, providenciaram uma gigantesca, tipo gamela, artesanal, de madeira resistente. Ela foi surpreendida pela ideia criativa, causando comentários nesse povoado da década de 1940. A engenhoca desafiando o luxo.
Lembrava-se de uma mulher de Santa Rosa, a “Sia Marica” que costumava visitar o Navalha, enchia o prato de coalhada, despejava a farinha por cima, dividia sob forma de cruz, consumindo uma parte de cada vez.
Naninha tinha olhos e cabelos brilhantes que chamavam atenção
Às vezes, os olhos chegavam a marejar quando olhava para o retrato de Bibi, sua irmã, que morrera aos 11 anos. Conservava a foto pendurada na parede e no silêncio do papel, ela estava sempre nos vendo e sendo vista. Nascera em 1924 e teve morte súbita, vitimada de febre tifo, em 1936.
Fecho os olhos e me vejo naquela cozinha – sentada à mesa, escrevendo às escondidas, cartas para um amor vivido na clandestinidade e tão preso dentro das cercas da proibição.
Meus pais reprovavam a minha escolha, o eleito do meu coração não lhes agradava. Preparava as cartas com caligrafia caprichada, tudo em letra manuscrita.
Certo dia, eu estava acabando o namoro e Naninha chorou quando “ouviu a minha dor chorando” como dizia Augusto dos Anjos. Eu lia em voz alta, com fala cortante e pranto copioso. Paula Fernandes me ajuda a administrar essa emoção, cantando: “Eu pensei que pudesse esquecer certos velhos costumes...”.
Parodiando Machado de Assis: “Esquecer quem há de ...” costume de estar deitado no meu colo um tempo adormecido, embalado com uma cantiga de ninar e que sempre evocarei, para não esquecer e nem tampouco ser esquecida.
E Luiz Pereira? Uma lenda!
Comerciante, criador de gado e dono de vários imóveis. Possuidor desse caleidoscópio que existe em todo ser humano: era bom, honesto, positivo, conservador e guardião do equilíbrio das filhas, dos netos e bisnetos.
A família saciava sua fome de dar sentido à vida. Sabia ser forte e paciente mesmo quando os ventos dos dissabores varriam os seus projetos de felicidade e paz. Como Pastor vigilante não deixava o seu rebanho disperso. Juntava as suas ilhas – arquipélago de amor. Toda criança que viveu no seu “antigamente” saboreava as suas deliciosas mariolas. Pródigo na colocação dos seus apelidos. Chamava a minha irmã, Lalá, de “Tuim”. Homem bonito, cuja altura alterava a paisagem humana de uma Boa Vista tão acostumada às estaturas pequenas.
O primeiro janelão, à esquerda, era a moldura que trancava o seu busto num pleno alheamento, com o seu olhar à deriva. No parapeito da janela ficava a lamparina “Chicão”. A sua chama dançante e tremeluzente, clareava a calçada. O cachimbo pendendo do lado da boca formava, com sua fumaça, espirais que faziam desenhos no espaço e que lhe eram prazerosos por alimentarem o seu vício.
Absorto em seus pensamentos, cantarolava, quase inaudível e eu me perguntava: qual será a música? Lua Branca ou Perdão Emília?  Que dizem os seus resmungos quando rumina o passado? Era o seu destino mirar paisagens à distância com os passantes, escutar retalhos de conversas “a vagar como pedacinhos de papel”.
Pra mim a lamparina ainda fumega e a chama bruxuleante arde sobre a janela, pois fazem parte de todas as lembranças sensoriais. Diz no livro da escritora, genealogista e artista plástica, Maria do Socorro Farias Almeida, que Luiz tinha um sonho: Conhecer o mar. Se fosse romântico, afeiçoado a poesia, teria escutado os versos da poeta Cecília Meireles: “Quando eu morrer voltarei para buscar os instantes que não vivi junto ao mar”.
Certa vez ouvi uma frase assim, pronunciada por um mineiro: “O mar chora e geme por que não banhou Minas”. Emocionada, sussurrei – o mar soluça porque ele e Luiz não se conheceram. O mar, Luiz, tem sal nas suas águas que se assemelham com as lágrimas salgadas que derramo, ao recordar essa época “tem coisas que se podem aprender nos livros, mas têm outras que só mesmo vendo e sentindo”.
Naninha e Luiz deixaram de existir, porém, o existido continua a me sensibilizar.
E assim, enveredei pelas sendas do passado, para cumprir um pacto que fiz com seu bisneto famoso, Bartos, que me pediu este texto, reafirmando o nosso Chico Buarque:
“Pretendo descobrir/ No último momento / Um tempo que refaz o que desfez”.   

 
* Miracy Farias (por Bartos Batista Bernardes) é uma cronista boavistense, com enorme embasamento literário - brasileiro e estrangeiro - que adquiriu, no decorrer de décadas voltadas ao estudo, um dom poético capaz de facilmente traduzir em palavras, quaisquer tipos de ambientes que provoquem o imaginário, sejam lugares, sentimentos, sabores, acontecimentos, sons e tudo o mais que possam aguçar a sensibilidade e as emoções humanas.








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